a vida não cabe no bolso # 403

                                                                                                                                                                              harry jr. av niemeyer
no fundo eu desconheço quase tudo

abra

desconhecer quase tudo
é uma espécie de conhecimento
maravilhar-se com o inesperado
é uma  maneira de assombrar-se

abra-se

aos pares vamos nos reconhecendo

estou um palmo
fora do plano
e não estou sozinho
reconheço
aos pares vamos nos reconhecendo

estamos fora dos planos
um palmo à frente deles
aqui no presente
fico contente
palmas pra nós que somos gente

há algo errado comigo

há algo errado comigo 
eu torço para o indio

beija flor

beija flor imbecil
beija a flor de plástico.

atônito, volta e revolta a ela
sem entender
o porquê 
do liquido que sorve agora
ser mais doce do que o que precisa dela

beija flor idiota
joga-se contra a janela

inebriado, sentidos enganados
sem entender
o porquê
o vidro fez que ele partisse a asa
pensando que fosse ao encontro dela

beija flor pobrinho
não sabe o que faz

adocicado atordoado domesticado
eu me solidarizo contigo

a vida não cabe no bolso # 402

quando nós tínhamos o futuro tudo era mais fácil

A vida em pedaços

enquanto você pula a poesia
ela sai a juntar os cacos
monta o quebra-cabeças
esquece da máquina, da mediação, da imundície
esquece a cada fim de tarde
do começo de cada noite
recolhe a flor extraviada
reconhece
a saída é a beleza

meu cabelo enrolado, minhas ideias esticadas

da importância de se saber quem é
e amar-se assim como se é
ser-se, sem se, em si
enfrentar-se , refletindo,
aquilo que é

aquilo que você é

nessa cidade 
não é a minha cidade,
você pode tudo, 
cante como um louco, dance como um louco, saia do gueto e fique rico, seja como um rico
você pode tudo
menos ser o que você é
e desconhece ser

- ninguém me conhece nessa cidade,
mas não faltam bocas para beijar

não seja ciumento
a cidade não é de ninguém
roube, mate, esfole e esgane
continue a se enganar
deixe queimar
você pode tudo menos ser o que você é
e desconhece ser

recondionamento

nessa cidade você pode fazer tudo 
mas você não sabe tudo o que você quer fazer

o departamento de controle das vontades é diferente das vontades dirigidas criadas pelo departamento de mídia e diferente da TFP

aquilo que você acredita que mais deseja pode ter sido criado pelo departamento de controle de vontades ou pelo departamento de mídia, e a TFP é outra empresa muito importante nessa cidade, reduzindo seu desejo, ou operando na castração e introdução de chips cimentadores dos sete buracos da tua cabeça

é interessante que você procure saber, isso, quem criou suas vontades, desejos, necessidades, e outras coisas também

se você não sabe tudo o quer, sem a interferência da TFP, da mídia, do departamento de controle de vontades,
então não você não sabe nada que interessa saber

nessa cidade você pode fazer tudo 
desde que você não faça tudo o que você quiser fazer

quisera absolutamente ser carne

quisera absolutamente ser carne
gozar dos infortúnios da dor
as faces enrubescidas de vergonha dela
o estupor provocado pela face do opressor
a ansiedade pela próxima chicotada
curar as feridas em sal grosso
banhar o corpo em cacos de telha
para elevar-em em espirito 
e deixar de ser carne

quisera absolutamente ser carne
gozar do fogo das paixões incontroláveis
sentir o frêmito ao avistar as tetas balançantes
ter o cu arregaçado
vaginas nunca iguais e sabê-las todas
caralhos imensos esteticamente apropriados para o deleite da visão
clitóris entumescidos
beijos rasgados
para elevar-em em espirito 
e deixar de ser carne

quisera absolutamente ser carne
para elevar-em em espirito 
e deixar de ser carne

ininteruptaMENTE

a questão é:

uma pergunta
uma resposta
uma pergunta
muitas respostas
muitas perguntas
muitas respostas
mais perguntas que respostas
não importam as perguntas, só as respostas
quem foi que perguntou?
por que ninguém responde?
uma única pergunta fundamental
a resposta certa
não existe reposta certa
a resposta está na pergunta
quem mandou perguntar?
eu pergunto e você responde:
Sim?

o plano

os desvios
e os caminhos retos
as bifurcações
os retornos
assim como a saída pelo acostamento

o ódio
o amor
o rancor
a esperança
assim como a apatia

nada, absolutamente nada, está fora do plano.

um dia

o dia acaba aqui
mas não em outro lugar

meu dia não acaba aqui
meu dia não cabe em nenhum sonho
meu dia não é meu dia
é o dia de quem chegar

um dia
vai ser o dia de todo mundo
é nisso que eu acredito
mas custa demais esperar

aquele dia maravilhoso

aquele dia maravilhoso, perfeito, um presente de Deus, repleto de acontecimento mágicos, de coincidências divinas, de encontros com o fabuloso acaso, de abraços apertados, de beijos roubados, de amores saciados, de flores mil, de céus azuis, de instintos satisfeitos, de espíritos materializados, pois é, não foi hoje

eles dois

que nada me possua, então
que eu possa ser tua, então

que eu possa sair da tua mão
que eu possa sair, dá tua mão

que eu, que tu, sejamos mais que um não
que eu, que tu, sejamos não mais que um não

que eu quero, não
que tu queres, não

ah, contradição

o mundo inteiro é da iniciativa privada

o mundo inteiro é da iniciativa privada

as peças de reposição
estão a se negar
a cumprir seu destino de escrotidão
viverão com as bolsas do estado
e de queixo erguido
cagarão para você

meu

meu coração
minha vida
meu poema
meu problema
minha condição
meu deus
meu amor
meu filho 
minha mãe
minha dor
meu nego
minha rua
meu país
meu mundo
minha dívida
minha dúvida
minha esperança
meu tudo

tristes humanos

vinte minutos, vinte minutos.

faltam sempre vinte minutos para alguma coisa,
porque eu sempre tenho alguma coisa para fazer daqui a vinte minutos que eu não vou fazer.
eu vou ficar aqui esperando os vinte minutos passarem.
vinte minutos demoram mais que vinte minutos quando se tem alguma coisa para fazer, que como todos sabem, eu não vou fazer.
todas as coisas que eu tenho para fazer devem esperar esses vinte minutos, elas não sabem que não serão feitas, por isso, para elas, o tempo passará de forma ordinária, vinte minutos são vinte minutos, mas para mim esses vinte minutos durarão um tempo cuja intensidade não sei descrever, um tempo muito doloroso, de onde retiro imenso prazer, inconsciente, pois embora não consiga descrevê-lo, consigo senti-lo e sofrer com  ele, embora de forma inconsciente, como é de conhecimento de todos.
vinte minutos, vinte minutos.

não foi o bastante

eu sei de tudo
sobretudo eu sei
estou perdido em você

isso talvez não seja demais 
pra ninguém
a não ser que
ninguém
seja você

em questão de minutos nada vai acontecer
de novo:
não há graça na ausência de flores
pois foi alguém que as queria que retirou
mas não deixou nada no lugar
só a água com cheiro podre
o mofo preenchendo tudo

o passado só é grotesco
quando você se lembra dele

as cartas de amor também ficam com cheiro de mofo

EM SILÊNCIO VÃO OS RATOS

COM SILÊNCIO VÃO OS RATOS
COMO VÃO OS RATOS EM SILÊNCIO?
VÃO OS RATOS PELOS VÃOS EM SILÊNCIO
SÃO VÃOS OS RATOS INDO EM SILÊNCIO
COMO SÃO RATOS VÃO EM SILÊNCIO
AD INFINITUM

qualquer pingo d'água

quando não é contigo
quando está longe do meu umbigo
quando passa longe do meu circuito
quando está fora do meu círculo
quando não é amigo do meu amigo
ainda desse jeito
eu sofro como se fosse comigo

quando o próximo passo é o precipício
quando amar é desperdício
quando encarceram um louco no hospício
quando a última página é o frontispício
quando o afeto é suicídio
ainda assim
eu padeço como se fosse comigo

porque eu sou o outro

o outro 
está contido
em tudo que está
incluído
no todo
busca indomável por um sentido para a vida, seja lá o que for isso

o seu amor

eu faço o favor de ficar calado
quando você me pede um trocado
pra comprar cigarros
com  a pressa tudo se acaba
só de birra
ficar a seu lado às vezes é muito arriscado

seu amor não é fácil

seu silêncio era tudo que se ouvia
no ventre cortado
da madrugada aflita em que seguias 
o cego perdido 
só de sarro
ficar a seu lado quase sempre foi um grande achado

seu amor me foi tão caro

ficávamos quietos
lado a lado
mano a mano
coração apertado
caminhos cortados
só o cansaço
ficar a seu lado sempre um grande barato

seu amor acabou com meu cansaço

eu peço
fique calada
enquanto eu me desembaraço
drogas baratas
conheço disso um bocado
só a mente desperta
ficar a seu lado ás vezes um desastre eterno 

seu amor me tirou o cabaço

do outro lado # 2

escolha um lado
eu ficarei do outro
sem o outro lado não há possibilidade de escolha

do outro lado # 1

escolha um lado
eu ficarei do outro
você sabe
do outro lado estão aqueles que te amam

como canta a cançao

folhas verdes e de outras cores caindo
fitas coloridas balançando ao vento
pedras de diferentes tamanhos se movendo
estrelas queimando no firmamento

como canta a canção 
tudo está repleto em movimento

eu não quero saber das más notícias

eu não quero saber das más notícias, mas não por isso elas vão deixar de existir.

se eu não souber dos roubos, dos estupros, dos assassinatos, se eu não souber de tudo isso, eles vão continuar acontecendo.

quando eu não sei disso tudo, e mais, quando eu não sei da existência dos falsos milagres, das quadrilhas que abusam da falta de espiritualidade e ignorância dos processos de auto-conhecimento, somadas ao desespero pela falência do sistema de saúde e o desconhecimento das leis que regem o mercado, ou  aos impasses da monogamia e da incompreensão da independência da vertigem e voragem do prazer, quando eu não sei da existência dos falsos profetas que abusam da credulidade e estupidez dos idiotas, nem por isso eles vão deixar de existir.

se eu não souber de muita coisa que está a acontecer, como o reavivamento de certo tipo de pensamento fascista, a glorificação da brutalidade, a manutenção da ordem horrível de todas as coisas, a conservação da falência do projeto de progresso, a rota contínua para o abismo, se eu não souber disso que está a acontecer, tudo vai continuar a acontecer da mesma forma.

quando eu não sei disso tudo isso, essas coisas, porém, não estão acontecendo próximas ao meu coração.

não se trata de me esconder da miséria do mundo, eu sei que ainda as vou ver, mas eu não as quero agora, não agora, que estou perto do fogo que me incendeia no alto da montanha,da brisa que vem do teu corpo e do seu calor, da alma alegre de todas as boas coisas, do cheiro do relva molhada e da certeza de estar vivendo os sonhos na realidade, próximo de tudo que me faz viver e sorrir, eu não quero saber de notícias ruins, do senso comum avacalhado, de mesquinharias e de gente que escolheu naufragar com as mãos pegajosas de cimento encardido, prontas a escarrar verdades mentirosas e alimentar uma realidade horrorosa que nunca vai ser a minha.

beijos estelados

nós sabemos fazer isso
nós não cabemos em nós
somos laços de fita coloridas

beijos de cinema
são 
um beijo não é somente um beijo
não há nada mais beijo em você estrelas
beijos estelados

greve geral

esse mundo, que precisa de garis, e de policiais, e de presidentes, e de mulheres que tiram fotos nuas para revistas, e de açougues, e de joalherias, de bloqueador solar, de campeonatos, de revistas de fofocas, de cadeias,de manicômios, de fábricas de carros,de exército de mão de obra de reserva, de exércitos, de mundo virtual, de comida industrializada, de conservantes, de crianças boçais, de aumento contínuo de produção,precisa de uma greve geral, de prazo indeterminado

a vida não cabe no bolso # 400

nada mais incômodo que que a comodidade

o mundo inteiro é teu

o que me fez homem
o que me faz homem
quem fez tudo
quem desfaz tudo
que há de fazer
quem definitivamente vai fazer
tão próxima
irmã
metade
inteira

teu é o mundo inteiro

tudo que está nas minhas fotografias

As minhas fotografias não são minhas, são deles, e delas, que nelas estão sorrindo.Os sorrisos são deles, as fotos são deles, e deles são as vozes, que ora estás ouvindo. Você adivinha nas fotos, tudo que eu não ousara pensar em colocar nelas.
Eu estou nas fotografias, embora não apareça nelas.
Tudo  que aparece nas fotos, tudo que não aparece, algo como a Lua, algo como o beijo, algo como o corpo em movimento,tudo que parece nas fotos, tudo que não parece, o vento, o desejo, o silêncio, tudo aquilo que eu vejo, e não vejo,aquilo que tu vês e não vês, aquilo que tu ousas acreditar, tudo e nada,  tudo que está, e não está nas fotos, toda ausência, toda falta, todo o não dito, o salto, o alto, o pouso, a ausência de repouso, tudo que não está, e está nas fotos, é seu, que quase me viu nelas.
Tudo que tu ousas está nas fotos elas são tuas.

escrito a lápis

tudo pode ser perdido
tudo pode ser apagado

tudo será perdido
tudo será apagado

desse jeito